A relação entre vírus fósseis, mosquitos e Star Wars

Filipe Dezordi
10 min readOct 3, 2020

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Na figura, no lado esquerdo um desenho representando as duas faces de um mesmo personagem: Anakin Skywalker e Darth Vader. Adaptado de sentido.geek e ”https://br.freepik.com/vetores/bandeira" vetor criado por macrovector — br.freepik.com.

Caro leitor, como esse será o primeiro texto de uma série de artigos de divulgação científica, sobre os meus resultados como pesquisador em treinamento — vulgo aluno de pós graduação no Brasil — vale algumas considerações iniciais: Por que estou fazendo isso e conceitos básicos de biologia molecular para leigos.

Bom, começamos pelo mais simples, estou fazendo isso porque a maior parte da ciência no Brasil é realizada em instituições públicas, logo parte dos impostos pagos pelo contribuinte são utilizados tanto na compra de materiais de laboratório, equipamentos, infraestrutura, e por último mas não menos importante, no pagamento de salários de pesquisadores, sejam esses pesquisadores concursados, ou alunos de pós graduação (sim a famosa bolsa de pós graduação é o salário de pesquisadores em treinamento). Dessa forma, você, caro leitor, financia, de uma forma extremamente diluída, minha pesquisa. Então nada mais justo que você saber o que estou fazendo com parte do seu dinheiro, certo?

Sobre o famoso DNA, frases e manuais….

Doodle da Google de um pesquisador de DNA ganhador do prêmio Nobel Har Gobind Khorana. (Amigos cientístias, ignorem a dupla fita de RNA da imagem)

Como meu trabalho envolve biologia molecular e evolução (sim, evolução, a teoria mais testada dentro da biologia, aprofundaremos esse assunto em um artigo futuro), é necessário uma explicação de alguns conceitos, para vocês entenderem o que eu quero dizer com encontrei vírus endogenizados em um genoma. Então, vamos lá!

Começando com o famoso DNA, DNA é a sigla em Inglês para (Ácido Desoxirribonucleico), evitando entrar em conteúdos de química, vamos tratar o DNA como um código, ou melhor, como uma frase. Então, nesse nosso contexto, o DNA vai ser uma frase que carrega algum tipo de informação, essas frases são escritas em 4 letras: A, T, C e G. Dessa forma, temos frases que indicam por exemplo, a cor dos olhos (em termos biológicos, uma característica biológica visível ou mensurável (que pode ser medida) é o fenótipo), e outras frases que não indicam um fenótipo em si, mas podem auxiliar no destaque ou na irrelevância de frases que indicam um fenótipo.

Seguindo na analogia DNA e frases, como nos livros, algumas frases de DNA são agrupadas em parágrafos (geralmente essas frases possuem algum tipo de relação), e os parágrafos, como nos livros, são agrupados em capítulos, esses capítulos, em termos biológicos, são chamados cromossomos. E o livro inteiro, ou seja, o conjunto dos parágrafos/cromossomos é chamado na biologia como Genoma. Sendo assim, nessa nossa analogia de DNA, frases e livros, o Genoma é praticamente o manual de instrução. Colocando de uma forma mais simplificada, vírus tem seus manuais (sim, no plural, pois cada indivíduo/organismo possui um manual único, que é parecido com os manuais de outros indivíduos da mesma espécie), bactérias têm seus manuais, o milho tem o seu manual (que é um tanto grande), e mosquitos e seres humanos também tem seus manuais.

Adaptação não literal de http://www.beatricebiologist.com/.

Dessa forma, esses manuais (Genomas) possuem algumas frases, que são traduzidas (sim, a ideia desse termo é literalmente tradução, como traduzidos Gato em Português para Cat em Inglês) em proteínas, por meio de uma frase intermediária conhecida como RNA (digamos, o primo magro do DNA). Pensamos então em proteínas como pequenas máquinas dentro das células (aquelas coisas minúsculas que cientistas tentam ver no microscópio, e que normalmente fazemos modelos de isopor no ensino médio), essas máquinas criam o resultado que podemos ver a olho nú (a cor do cabelo, tom da pele, e por incrível que pareça, se gostamos ou não de brócolis), o fenótipo.

Recapitulando então, temos o manual de instrução (Genoma), que está distribuído com uma cópia em cada célula do organismo, esse manual gera algumas frases de RNA (primo magro do DNA), que são traduzidas em proteínas (pequenas máquinas), essa tradução é feita a cada 3 letras de RNA, e o produto de cada 3 letras é um aminoácido (diferente das 4 letras do DNA [A, T, C e G] temos 21 letras que indicam algum composto químico, ou os “tijolinhos” que formam as proteínas). E esse é praticamente o arroz com feijão da biologia molecular básica: DNA→RNA→Proteína.

Mas e os vírus?

Adaptação de ”https://br.freepik.com/vetores/bandeira" vetor criado por macrovector — br.freepik.com.

Bom, como estou escrevendo esse artigo em 2020, você, caro leitor, provavelmente escutou em algum momento (se você passou o primeiro semestre de 2020 em alguma região habitada por outros seres humanos) sobre o coronavírus. O coronavírus amplamente divulgado nos noticiários esse ano, faz referência à um vírus específico (o SARS-CoV-2). Pensamos num vírus como um organismo que possui um manual um tanto menor que o manual de outros organismos, e esse manual não possui frases que permitam que esse vírus tenha todo o conjunto de máquinas (proteínas) para manter seu “ciclo de vida” (entre aspas, pois debates fervorosos são gerados pela discussão se vírus é um ser vivo ou não).

Bom, devido a essa falha no manual dos vírus, esses organismos precisam usar as máquinas de outros organismos, como bactérias, mosquitos e seres humanos, por exemplo. Para isso, um vírus precisa infectar (entrar e roubar os recursos, vírus não são diferentes de um ladrão com uma boa chave-mestra) uma célula de outro organismo, e usar as máquinas desse organismo para fazer cópias do seu manual, quanto mais cópias um vírus consegue fazer e mandar para outros organismos, sem ser notado, maior o sucesso desse vírus em se espalhar, como foi o caso do SARS-CoV-2.

Bem, e porque estamos falando de manuais, de vírus, e porque eu fico citando mosquitos?

Pois bem, eu trabalho com manuais de mosquitos (de vários mosquitos, tanto o do “mosquito da dengue”, quando o pernilongo comum, ou muriçoca). Se formos recapitular, vírus e mosquitos tem seus próprios manuais, e esses manuais possuem frases, será então, que podemos comparar essas frases? e a respostas é um lindo, em negrito e letras grandes, SIM!

Na foto, um mosquito se alimentando de uma pessoa, uma prática normal para as fêmeas de mosquito, onde conseguem obter ferro para maturação de seus ovos. Nesse processo, podem ser transmitidos diversos patógenos (organismos que fazem mal à saude), inclusive vírus. Imagem de ’https://br.freepik.com/vetores/projeto' criado por freepik.

Dentro da pesquisa científica, esses manuais são armazenados literalmente em arquivos de texto. Temos grandes (e algumas bem pequenas) máquinas nos laboratórios que inserimos o DNA de um organismo (basicamente pegamos as células desses organismos, tiramos o DNA lá de dentro, misturamos com um conjunto de materiais biológicos e químicos e voi la! temos um arquivo de texto com as letras que compõem o m̶a̶n̶u̶a̶l̶ genoma do organismo). Então após várias horas no computador, e uma série de programinhas (ou você achou que o computador só servia pra navegar na internet e abrir documentos de texto e imagens? haha) podemos comparar a frase de um genoma do mosquito, com as frases de um genoma do vírus.

E se acharmos frases semelhantes no manual de um mosquito, e num manual do vírus? Bom, existe a possibilidade dessas frases terem sido transferidas, ou do vírus pro mosquito, ou do mosquito pro vírus. Ou seja, uma frase de vírus foi escrita no manual dos mosquitos! Esse processo, em termos de biológicos é conhecido como Endogenização Viral. Então agora se eu disser que eu encontrei vários vírus endogenizados em um genoma de mosquito, fica claro o sentido? Basicamente eu usei/criei programas de computadores para comparar manuais de mosquitos e manuais de vírus, após alguns meses exaustivos de análises e aplicações de filtros (nem toda frase semelhante é uma transferência de frases de manuais diferentes) eu encontrei algumas frases virais dentro do manual dos mosquitos! E porque isso é interessante?

Vírus fósseis e suas peripécias

Representação de vírus como se fossem fósseis. Retirado de https://cienciahoje.org.br/artigo/virus-fosseis/

A maior parte dessas frases virais nos genomas de mosquitos, as quais vou me referir como EVEs (um Elemento Viral que foi Endogenizado), foram transferidas, escritas ou endogenizadas, como queira, à milhares ou milhões de anos atrás. Então elas servem como marcadores de infecção viral, ou seja, se um organismo possui um EVE, algum ancestral dele, ou ele mesmo, sofreu a infecção viral por um vírus, que teve seu DNA escrito no seu material genético (genoma, lembra?), no nosso caso, mosquitos. Ou seja, se um mosquito possui um EVE, algum ancestral dele, ou ele mesmo, sofreu a infecção viral por um vírus, que deixou seu DNA escrito no seu genoma.

Podemos identificar esses EVEs, porque eles são praticamente como fósseis, organismos que possuem ossos (e alguns que não possuem), viram fósseis devido a entrada e saída de água, e ao depósito de minerais, no corpo morto desses organismos ao longo do tempo (os fósseis de dinossauros que temos hoje, são basicamente minerais que entraram no osso do dinossauro, depois que o osso deixou de existir, restou o conjunto de minerais). Vírus não possuem ossos, nem estruturas que permitam esse evento de fossilização que vemos nos dinossauros, mas quando eles são escritos no genoma de outro organismo (mosquitoooooooooooooooooos!) podemos identificar sequências desses vírus ancestrais (que infectaram o mosquito à milhões de anos), usando os manuais de mosquitos atuais. Dessa forma, um EVE é o registro de um vírus fóssil. Interessante, não? se você ainda não está convencido que centavos do seu imposto venham pro meu salário, lá vai uma última tentativa!

Podemos nos perguntar: qual a importância desses EVEs? Bem, voltando ao início do texto, lembrando que o DNA é traduzido em proteínas, através do seu primo magro, o RNA, o que acontece se temos um DNA viral dentro do m̶a̶n̶u̶a̶l̶ genoma de um mosquito? Bem, na maioria das vezes, nada, decepcionante, não?. Como EVEs foram gerados há milhares/milhões de anos, a probabilidade de um EVE ser modificado (por meio de processos evolutivos), é muito alta (ainda mais quando consideramos que um processo de t̶r̶a̶n̶s̶f̶e̶r̶ê̶n̶c̶i̶a̶ ̶d̶e̶ ̶f̶r̶a̶s̶e̶s̶ endogenização viral pode ocasionar na morte do organismo). Porém, em alguns casos raros, o EVE se mantém inteiro, ou seja, capaz de produzir uma proteína viral.

Alguns desses raros casos, um EVE pode gerar uma proteína viral que torna o organismo imune, ou muito resistente, à um vírus circulante. Pensamos nisso como uma vacina que ocorre na natureza. Esse evento é extremamente importante na biologia de um organismo, principalmente em mosquitos, que são constantemente infectados com vírus (lê-se surtos de Dengue que vemos todos os anos, e mais recentemente Zika e Chikungunya). E adivinha? eu consegui encontrar um grupo de EVEs em vários manuais de mosquitos, que podem gerar uma dessas proteínas envolvidas nas “vacinas naturais”, isso foi encontrado para diversas espécies de mosquitos (incluindo o “mosquito da dengue” e a muriçoca), e experimentos iniciais na bancada (fora do ambiente computacional) indicam que esses EVEs estão em populações de mosquitos de Recife (em termos generalistas, os mosquitos que analisamos podem ter uma resistência natural a um grupo de vírus, como se fosse uma vacina natural), e isto, pode influenciar se uma espécie de mosquito pode transmitir ou não, determinados grupos de vírus.

E o que tem a ver Star Wars com tudo isso?

Anakin Skywalker, retirado de sentido.geek

Bom, na verdade não encontramos apenas a proteína no EVE, nós conseguimos identificar também que essa proteína pode estar envolvida na origem de um retrovírus (retrovírus é um vírus que precisa entrar no genoma do organismo como parte do seu ciclo de transmissão), e como todo bom cientista, gostamos de dar nomes aos nossos achados, no caso o nome desse possível retrovírus (eu digo possível porque precisamos de mais experimentos de bancada para bater o martelo) é Anakin (sugestão da nossa incrível colaboradora Crhis Vasconcelos, obrigado por não deixar eu e Gabriel colocarmos um nome quase que obsceno nesse retrovírus), mas porque que Anakin?

Bom, você provavelmente já ouviu a velha expressão “Eu sou seu pai” proferida pelo famoso Darth Vader na saga Star Wars (e revivida no Toy Story 2 na história do Buzz Lightyear). Bem, na verdade Darth Vader tem como nome de batismo Anakin Skywalker (e não, não é spoiler se a saga tem mais de 20 anos). Anakin trocou de lado duas vezes na sua vida, a primeira delas é quando ele vai para o lado negro da força tornando-se Darth Vader, e a segunda é no final da trilogia original quando ele, como Darth Vader, se rebela contra seu mestre Darth Sidious.

Dessa forma, como alguns grupos já tomaram a liberdade de batizar seus retrovírus como personagens do Senhor dos Anéis, nós utilizamos de nossa criatividade para usar conceitos humanos de bem e mal, e atribuir isso para proteínas, sendo uma proteína viral do lado do mal (Darth Vader), se transformando em uma proteína do bem (possível função antiviral, Darth Vader contra Darth Sidious), e resolvemos batizar nosso elemento de Anakin. Eai, gostou?

Considerações finais

A ciência é construída com trabalho em equipe! Imagem de ”https://br.freepik.com/vetores/bandeira" criado por macrovector.

Bom se você não achou interessante financiar de forma bem diluída minhas pesquisa, é uma pena, eu realmente me esforcei nela, e os resultados são promissores, além de impactar no estudo de vírus em mosquitos do Brasil. No mais, gostaria deixar claro que essa pesquisa não foi feita apenas por mim, mas com a colaboração vital para esse estudo da Crhisllane Vasconcelos, e da mentoria de dois pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz — Instituto Aggeu Magalhães (IAM), Antonio Rezende e Gabriel Wallau. Além do trabalho em equipe, toda a infraestrutura de laboratórios e de computação do IAM foram essenciais para esse estudo, bem como as inúmeros tiradas de dúvidas tanto na bancada (valeu Laís, Lari e Luísa) quanto na parte computacional (valeu Crhis, João, Elverson e Alex). Por fim, mais um agradecimento a Luísa pela revisão e correção de ortografia desse texto. Referências estão no final do artigo.

O estudo completo, com todas as referências, pode ser encontrado neste link!

Por esse artigo era isso caro leitor, quaisquer dúvida sobre esse estudo ou para sugestões de como tornar um texto de conteúdo científico mais claro e acessível para o público geral, por favor deixe nos comentários.

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