A chave para uma vida feliz no laboratório está no manual, por Mariam Aly

Filipe Dezordi
6 min readJun 27, 2019

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Este texto foi originalmente publicado na revista Nature, Vol. 561 de Setembro de 2018 e pode ser encontrado neste link por Mariam Aly, a qual concedeu permissão, a este que vos escreve, para traduzi-lo. O texto segue ipsis litteris o conteúdo original, com exceção dos trechos em negrito, onde achei necessário inserir algum comentário.

“Um ano e meio atrás, enquanto eu estava me preparando para o lançamento do meu próprio laboratório de estudos cognitivos na Universidade de Columbia, na cidade de Nova York, eu continuava voltando a uma preocupação particular: Em breve eu iria ser responsável pelo avanço científico dos estagiários. Como eu poderia ajudá-los a serem os melhores cientistas que eles poderiam ser, enquanto também protejo o bem-estar deles?

Eu encontrei a resposta no Twitter. Dois orientadores (Em inglês usa-se o termo P.I. de Principal Investigator) da minha área, Jonathan Peelle da Universidade de Washington em St Louis, Missouri, e Maureen Ritchey da Universidade de Boston (Boston College) em Massachusetts compartilharam seus manuais de laboratório. Expondo suas próprias expectativas, e de seus estagiários, bem como recursos e dicas para guiar estagiários durante seus respectivos tempos em laboratório. Eu decidi seguir os passos deles escrevendo um manual de laboratório para introduzir aos meus estagiários a minha filosofia de pesquisa e de equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal. Isso tomou muito tempo e raciocínio, mas é algo que eu recomendaria para qualquer um que lidera um grupo de pesquisa.

Nos últimoses meses do meu período de pós-doutorado, eu pensei sobre o que funcionou bem, e o que não funcionou muito bem, para mim como orientadora (No texto original é usada a palavra Trainee para ambos os lados, separei como estagiários e orientador, para fazer mais sentido em Português) e como criar as melhores práticas para o meu laboratório. Então eu deixei escrito as coisas que normalmente são transmitidas informalmente. Por exemplo, para mim não importa se os estagiários chegam às 9 da manhã, ou a 1 da tarde, ou se trabalham de casa, desde que eles façam seus trabalhos e honrem seus compromissos. E eu explicitamente encorajo meus estagiários a falarem comigo caso precisem desabafar ou sintam que estão se afundando: A academia pode ser estressante, e eu quero ajudar.

Eu abordei conselhos que imaginei necessários a estagiários: E se eu cometer um erro no meu experimento? (Tudo bem, todos nós erramos, diga a seus colaboradores a verdade para que vocês possam discutir os próximos passos.) Eu tenho que trabalhar 80 horas por semana para ter sucesso? (No.) Como eu posso garantir que meus resultados são reprodutíveis? (Faça checagem dupla no seu código, adicione comentários explicatórios, documente cada passo da análise de dados e use controles de versões.) Como eu posso participar de ciência aberta (faz referência a um modelo de prática científica que, em consonância com o desenvolvimento da cultura digital, visa a disponibilização das informações em rede de forma oposta à pesquisa fechada dos laboratórios)? (Compartilhe publicamente estímulos, códigos e dados quando você submeter um manuscrito.)

Eu suplementei meu manual de laboratório com uma wiki (Uma wiki é um website no qual utilizadores modificam colaborativamente conteúdo e estrutura diretamente do web browser). Isso inclui tudo, de ferramentas para aprender linguagens de programação (R e Python), como fazer análises de neuroimagem, até dicas de como se manter atualizado com a literatura científica (usando os feeds do SRR e do Twitter) e onde encontrar o melhor bagel (O bagel é um produto de pão tradicionalmente feito de massa de farinha de trigo fermentada, tipo uma rosquinha) em Manhattan (a uma caminhada de 10 minutos do laboratório). Meu objetivo é que cada novo membro do laboratório possa ler o manual e a wiki e, em seguida, entrar no laboratório sabendo o que esperar.

Eu tentei muito me manter responsável pelo o que eu tenho escrito. Por exemplo, eu prometi reuniões semanais com cada estagiário, e eu tenho mantido, apesar de ser um desafio com as obrigações de professora e com as viagens. Eu espero que a consistência entre as minhas ações e minha palavras possam ajudar membros do laboratório a entender o que eu quis dizer quando eu escrevi, mesmo que eles ainda não tenham experimentado tudo o que prometi.

Eu peço a cada estagiário para ler o manual do laboratório. Eu faço questão de referenciá-lo e ao wiki, juntamente com exemplos repetidos, não tão sutis, de sua utilidade. Os membros do meu laboratório agora contribuem com a wiki sem que eu peça. Quando eu chequei se eles acham que esses recursos são úteis, a resposta foi um ‘sim’ retumbante. Suas ações também sugerem que eles estão internalizando o que eles lêem. Alguns compartilham suas dificuldades comigo, pedindo conselhos e tirando alguns dias de folga para sua saúde mental — Como eu esperava que eles fizessem, e era isso que eu desejava quando virei orientadora.

Aqui temos outro exemplo: meu manual de laboratório afirma que os estagiários têm o direito de ler meus subsídios (Grants, em Inglês, pode ser traduzido como bolsas de pesquisa aqui no Brasil), e os membros do meu laboratório tem pedido para vê-las. Isso é algo que eu nunca perguntei aos meus orientadores; Eu pensei que isso seria presunçoso. Percebo agora que meu pensamento estava certamente errado, mas meus próprios sentimentos desconfortáveis da época de estagiária penas me mostram como é importante escrever que alguma situação está Ok — do contrário, o estagiário pode pensar que não. Isso vale em dobro para as áreas que os estagiários tendem a ser mais sensíveis: Eu tenho escrito em preto e branco que está tudo bem em cometer erros e manter um equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal.

Criar um manual de laboratório e uma wiki leva tempo, mas existem vários exemplos para usar como inspiração. Meu manual de laboratório e a wiki estão publicamente disponíveis para qualquer um usar como ponto de partida. Uma vez que a wiki tenha sido escrita, o laboratório inteiro pode mantê-la, se todos participarem, qualquer atualização em particular vai levar alguns minutos.

O esforço inicial de escrever um manual salva grandes quantidades de tempo na longa jornada. Repetidamente eu não preciso procurar em e-mails ou na internet para achar a resposta de um problema que eu ja resolvi, mas que caiu no esquecimento. Da mesma forma, meus estagiários não tem que lutar para encontrar respostas das perguntas mais frequentes (por exemplo, ‘como entro no edifício fora do horário de trabalho?’). Mais importante, ter um manual de laboratório requer que você seja explícito e transparente sobre suas expectativas e o que você promete fazer pelo seu laboratório — cada estagiário lê as mesmas expectativas com as mesmas palavras, colocando todos no mesmo pé de igualdade.

Um ano após escrever o manual do laboratório, eu o reli e o revisei. Esse processo me lembrou tudo que estava em jogo: tudo que eu prometi para meus estagiários e tudo o que eu precisava fazer para garantir um ambiente de laboratório saudável, feliz e seguro. Isso também me fez refletir o quanto eu estou satisfeita com o meu laboratório. Meus estagiários trabalham duro, são sociáveis e solidários uns com os outros. Eu amo caminhar e ver eles trabalhando juntos em um problema, ou rindo e dançando quando eles resolvem um. Eu posso ter escrito o manual do laboratório, mas meus estagiários deram vida a ele.”

Mariam Aly é professora assistente no Departamento de Psicologia na Univerisdade de Columbia, em Nova York.

Filipe Dezordi é um estudante de pós graduação, que tenta fazer várias coisas ao mesmo tempo, e acaba fazendo quase nada, e recentemente decidiu traduzir textos do Inglês para o Português enquanto o algorítmo da Google não está perfeito.

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